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Sobre a produção de Sueli Espicalquis
 

Percebo no trabalho de Sueli Espicalquis um raciocínio elegante e bom acabamento técnico, principalmente nas pinturas em grande formato. É interessante notar suas sobreposições, recortes de planos de cor e registros de campos criados com máscaras, que produzem, nos olhos de quem observa algumas pinturas, um possível desejo de paisagem, dada a vontade de retina e cérebro de reconhecer o familiar nas imagens com as quais nos deparamos. A poesia pode residir neste lugar, no indizível. Os grandes blocos de cor, aliados a formas acumuladas em campos descentralizados da tela, ativam esse suporte de maneira inteligente e fluida, gerando espaços de peso e leveza na imagem.


Em seu portfólio, a artista fala da intuição na construção química das pinturas, ou seja, na diluição de tintas através de solventes ou no emprego da cera, porém, tomo a liberdade de aliar essa intuição ao cálculo, a um raciocínio preciso e estruturado que revela um processo de pesquisa sofisticado. Pensar a intuição como um dos processos de construção da pintura da artista, remete-me a pontuações de Pintura: a tarefa do luto, de 1986, do historiador de arte francês Yve-Alain Bois:


Focalizarei num clamor específico: aquele da morte da pintura e, mais especificamente, da morte da pintura abstrata. O significado dele é ressaltado por duas circunstâncias históricas: a primeira é que toda história da pintura abstrata pode ser lida como um desejo por sua própria morte; a segunda é a recente urgência de um grupo de pintores neo-abstratos, que têm sido apontados como os enlutados oficiais (ou eu deveria dizer ressuscitadores?).

(BOIS, 1986. p. 98)


As palavras de Bois me vêm à mente ao observar as passagens e valores cromáticos nas imagens de Sueli Espicalquis, pois possuem um tempo lânguido e vagaroso, que não creio ser mórbidas, como no trecho citado, mas talvez letárgico e onírico, pois me atrevo em dizer que pintura de Espicalquis também acontece na suspensão do tempo cronológico. 

Cadu Gonçalves 

Reconstrução

(...)
Subiu a construção como se fosse máquina

Ergueu no patamar quatro paredes sólidas

Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima

Chico Buarque

Atualmente vivemos em um momento tão paradoxal no Brasil que é difícil não estarmos perplexos. Com a crise da representação politica bem como das demais instituições basilares para o exercício pleno da democracia, impossível não relembrar a música de Chico Buarque intitulada Construção, criada em plena ditatura militar em 1971. Como repensar um pais do futuro em frangalhos? Como refletir sobre o papel da arte em um momento que a liberdade de expressão novamente vem sendo tolhida? Como ver sentido em obras que claramente reiteram os gêneros já clássicos como a pintura e a colagem num mundo cada vez dominado pelo espetáculo de uma arte contemporânea que parece não ter mais fronteiras?

A palavra Reconstrução surge no sentido literal de passarmos a construir num terreno de terra arrasada. Quando estamos sem rumo melhor não olhar para o lumiar das estrelas para guiar nossos passos? E, no entanto, a luz presente agora foi emitida há anos luzes atrás. O ato de pintar, neste sentido, aparece para estes artistas como um ato de buscar vestígios a fim de mapear o presente

Subiu a construção como se fosse máquina

Ocupar o espaço do Contraponto, um espaço sempre em construção não é tarefa fácil. A presença imponente do Cubo branco sempre coloca a presença das obras em questão. As pinturas de Sueli Espicalquis remetem sempre a paisagens aéreas distantes vistas a partir de máquinas fotográficas ou artefatos aerodinâmicos. As passagens cromáticas sutilmente delineadas por tons indefiníveis, desconhecidos pela gramática das cores, produzem, entretanto, uma forte presença espacial. Diferem em tamanho, mas sempre apresentam uma ampla escala e ocupam, sem titubear, o espaço expositivo. (...)

Marco Giannotti
Texto da exposição Reconstrução, Espaço Contraponto, São Paulo-SP, 2017



 

in tenui labor

Manifestando um antigo ideal de obra breve, concisa e refinada, a expressão de Virgílio que dá nome à mostra aponta para duas características fundamentais encontradas na pintura de Sueli Espicalquis: a síntese formal e a reflexão, ilusoriamente modesta, que a pintura requer para que esta operação se realize. Preocupação constante no seu processo de trabalho, Sueli conquistou aos poucos uma fatura pictórica sutil, vinculando a cor à materialidade densa da tinta a óleo com variações dadas pela mistura da cera de abelha e de solventes, que lhe permitiram construir relevos cada vez mais delicados e imprevisíveis.

A imagem resultante do acúmulo da matéria colorida justaposta, em contraste com planos mais finos de tinta evoca, por analogia, uma paisagem do ponto de vista aéreo, de cidades “imaginárias” edificadas a partir de princípios visuais gráficos de mapas e guias urbanos. Na forma da pintura, este pensamento ganha corpo sensível: adensamentos, acidentes e espaços vazios indicam outros caminhos que, divergindo do sentido quase preciso a um destino programado nos nossos aplicativos atuais, ainda assim nos fazem encontrar um lugar.

Podemos encontrar nos “pequenos assuntos” do dia a dia motivos para histórias com desfechos que, para nossa surpresa, podem ser muito mais gloriosos. E para isto acontecer, precisamos nos deter a esses “assuntos” para poder aprender a olhá-los porque “ver é uma operação que exige um esforço”, como disse Matisse há muito tempo atrás. Mas comentários são quase sempre insuficientes para tratar tal questão. Principalmente se contrapostos à experiência concreta de observar pinturas, como as de Sueli, porque acredito que, além de aprender a ver, é muito mais laborioso e delicado para um artista “fazer os outros verem”, também.

eurico lopes

Texto da exposição in tenui labor, Espaço Cultural TRT-Campinas-SP, 2016

 


 

Interstício

Na linguagem cartográfica de guias, mapas e plantas urbanas, a cor frequentemente é utilizada para diferenciar algumas formas de ocupação do terreno: ruas, praças, construções e seus intervalos. Configurando espaços aparentemente não ordenados, estes últimos recusam-se a uma definição fácil e, por geometria ou função improváveis, mais se assemelham aos interstícios de um organismo vivo do que a um desenho arquitetônico anteriormente planejado.

Por analogia ao nó típico de cidades desmesuradas, o interstício ganha um novo corte na continuidade do tecido pictórico. O caráter quase topográfico da superfície, que evoca vistas imaginárias, depende fundamentalmente do modo como são articuladas as sobreposições e a justaposição das camadas de tinta. Recortes da cor delimitados com resquícios de máscaras, aglomerados ou dispersos, por vezes se entrecruzam por insistência nos detalhes e nos arranjos construtivos da pintura. em algumas dessas massas irrompe o peso da matéria espessa do óleo com a cera, em contraponto ao plano, outras áreas aparecem diluídas e delicadamente pintadas fundindo-se ao tecido, que também revela seus próprios interstícios.

Sueli Espicalquis procura definir diferenças significativas na matéria que manipula para poder evidenciar a qualidade concreta e expressiva da cor. A atitude da artista subverte a composição de acordo com um projeto prévio e o motivo, que é sobretudo algo que a chama à memória, manifesta-se durante seu processo investigativo com suficiente liberdade de improvisação. Sua pintura dispensa a literalidade típica e familiar das imagens convencionais e insiste no domínio da experiência da forma, na qual o lugar que se afigura revela-se interligado por relações tanto mais imprevisíveis quanto sólidas.

Eurico Lopes

Texto da exposição Interstício, Galeria Nelson Penteado de Andrade, Santos- SP, 2015

 


 

Absonar

É sob a égide de tempos fragmentados, de dias voláteis, de fluxos algo sem controle que a paulista Sueli Espicalquis finca sua obra visual. Por meio de uma produção multifacetada, mas que tem especial apreço pela pintura, com espaço também para o desenho, o vídeo, a fotografia e o tridimensional, a artista vai ganhando terreno com uma poética própria, uma espécie de topologia de composições e planos sobrepostos, de conteúdos de cor ora mais amenos ora mais vigorosos, de ruídos desestabilizadores e contínuos.

Para refletir sobre a era em que vive e o seu entorno, Espicalquis, matemática de formação, transitou por alguns pontos comuns na formação de um jovem artista (no caso, uma nova pintora), como o apreço pelas superfícies matéricas, a enfatizar a fisicalidade da cor, e a escolha de arranjos mais orgânicos. E, por meio de outros suportes, também optou algumas vezes por peças mais relacionais, a enfatizar a participação do (ex- ) observador.

Contudo, a paulista parece ter enveredado com mais força e consistência por um campo expandido do pictórico. Abandonou a sedução da diversidade dos materiais, sobressalente na fatura das telas e na composição de figuras de contornos menos determinados, e reforçou o que Paulo Herkenhoff já intitulou de “acontecimentos pictóricos”*1. Pois a qualidade dos trabalhos de Espicalquis vem mais das relações agora arduamente construídas pela artista, num labor elogiável e de temporalidade mais dilatada do que seus experimentos iniciais pelo suporte, que hoje, com um pouco mais de análise, se ligam a obras de sua autoria em outras linguagens, como seu vídeo Figuras Sonoras, em que uma superfície rugosa vibra e ganha desenhos espontâneos, de acordo com a sonoridade produzida pelo arco de um violino. Há chiados e fricções, e são bem-vindos.

“(...) A sociedade em rede permitiu flexibilizar a visão futurista articulando o espaço dos fluxos e o espaço dos lugares exclusivamente em benefício dos primeiros. Como qualificar essa nova urbanidade? O urbanismo contemporâneo é duplo, ambíguo, uma vez que ele privatiza e fragmenta, sobretudo porque interconecta lugares privilegiados. Enquanto as cidades clássicas, por mais idealizadas que sejam, são polos autônomos e dão forma a uma cultura de limites e de proximidade, o urbanismo de rede interconecta os espaços próprios a rede em detrimento dos outros. A proximidade pode ser ignorada quando os limites urbanos caem. O fora e o dentro são então radicalmente separados (...)*2, alerta Olivier Mongin. Essa descrição do pós-industrial em vigência pode retratar, com enorme e curiosa precisão, o ambiente no qual se insere a poética de Espicalquis.

Por meio tanto de grandes como de menores telas, a artista vai configurando seus planos de cor que buscam a amplidão _ destacam-se os tons de verde e de azul _ e, no entanto, acabam atingidos e solapados por outros planos, por vezes de colorido mais artificial, por vezes de cores básicas. E como se uma jornada plástico-visual almejasse um dado mais libertário, mas fosse sufocada por algo que predominará e é originário de uma força maior, algo não compreensível e com características nada suaves, que pendem para o bruto. Mesmo que, a priori, tudo pareça harmônico. E que também, numa mirada leve e inicial por tais quadros, aparentemente surjam cenas aéreas de campos bucólicos e plácidos.

Assim, a obra de Sueli Espicalquis nos lança mais em relações que atestam o conflito e a intranquilidade, distanciando-nos da assepsia virtual que aparentemente nos embebe. Sua planaridade de cores tem sim mais a ver com a corrosão física e de barulho cortante que a brasa de cigarro produzira sobre o papel, em série de desenhos anteriores que tracejavam, num jogo de arrojo e de hesitação, uma figura humana a nunca se completar. Tais construções podem ter como habitat os planos superpostos realizados pela artista mais recentemente, num tráfego de dados-trajetos que mais se dirige a um bug concreto e nada longínquo do que a uma suposta exatidão funcional.

 

1. HERKENHOFF, Paulo. Prêmio CNI Sesi Marcantonio Vilaça Artes Plásticas 2006/2008. Sesi, Brasília, 2009, p. 31

2. MONGIN, Olivier. A Condição Urbana. São Paulo, Estação Liberdade, 2009, p. 132

 

Mario Gioia, outubro de 2014

Sueli Espicalquis, com referências cartográficas do cotidiano, representa de forma singular a anatomia da arquitetura contemporânea a partir de formas que se sobrepõem geométrica e pictoricamente. A artista, com sua obra, deixa em evidência a transformação nas formas de representação que têm tido a paisagem na espiral cronológica do desenvolvimento do Homem. Ao mesmo tempo articula de forma bidimensional as conexões do Homem com o meio em que vive.

Andrés I. M. Hernández
Texto da exposição Natureza Hoje, Museu Florestal, São Paulo-SP, 2011

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